CLUPAC - Clube Português de Coleccionadores de Pacotes de Açúcar

terça-feira, junho 20, 2006

"Arqueologia do Açúcar ou a Memória do nosso Esquecimento" - Os Engenhos

A propósito do processamento da cana-do-açúcar e dos seus métodos fala-nos, em particular, o texto em baixo, dos Engenhos ("locais destinados à fabricação do açúcar"), que durante longos anos fizeram história na produção açucareira, entre outros locais, no Brasil e na Ilha da Madeira.

Este documento, elaborado em 1996, merece uma análise atenta... e já agora, muitos são aqueles que provavelmente não conhecem os pacotes de açúcar da Hinton (empresa que se estabeleceu no Funchal no início do século passado e que é referenciada no texto)... em breve serão aqui colocadas algumas imagens dos mesmos!


"Arqueologia do Açúcar ou a Memória do nosso Esquecimento...

Nos últimos tempos generalizou-se o assalto aos engenhos. Perdidos no tempo e para a hodierna sociedade pós-industrial, estes maquinismos tornaram-se incómodos ao progresso, às exigências e necessidades do presente. De uma ponta à outra da ilha é fácil encontrar-se vestígios ou complexos industriais em vias de extinção.

O panorama não é novo e tão pouco só nosso. No velho continente, mais propriamente em Motril (Granada), um dos poucos locais da Europa onde, a exemplo da Madeira, a cana-de-açúcar teima em persistir, a situação repete-se: ao lado de engenhos que teimam em laborar o açúcar ou a aguardente, jazem outros a fogo-morto cobertos pelo pó e teias de aranha. Um deles que tivemos o privilégio de visitar ainda se mantém intacto, tal como parou de funcionar a alguns anos atrás. Falta-lhe apenas a vontade dos homens e o impulso da força motriz gerado pelo vapor das caldeiras.

Do outro lado do Atlântico, no Brasil ou nas ilhas açucareiras da América Central, as pequenas usinas industriais jazem adormecidas, devoradas pelos grandes complexos açucareiros.
A situação repete-se na Austrália, um dos mais importantes mercados da lavoura do açúcar, a par do Brasil e Cuba. Apenas no interior da China, da Índia, ou em Cabo Verde o vetusto trapiche quatrocentista continua a torturar os socos de cana, fazendo-os chorar a tão preciosa guarapa.

Parte deste património em vias de extinção foi recompilado por Jock Galloway na sua monumental obra sobre o açúcar, que vem complementar a de NOEL DERR.

A partir destas memórias torna-se evidente que a crise, o abandono não são apenas apanágio dos nossos engenhos. Por isso parece-nos que devemos ser realistas quando carpimos as mágoas do património. A que está em causa não é a possibilidade próxima de perdermos este parque industrial. Impossível será conseguir os meios financeiros para os perpetuar, se tivermos em conta que alguns se situam em áreas de grande valorização do solo. O importante é conseguir-se condições para perpetuar a sua memória, através de um museu vivo e nunca de um espaço morto, num dos engenhos ainda disponíveis no meio rural.

De todos, talvez o mais emblemático seja o engenho do Hinton, que ficou no imaginário de todos nós. A sua dimensão e pujança no nosso quotidiano estabelecem uma relação afectiva que nem a sua destruição o poderá apagar. Mas não é só isso que o valoriza. Ele foi um marco emblemático da revolução industrial na indústria açucareira e representou para a ilha o retorno da cultura da cana-de-açúcar, após duas centúrias de esquecimento. E, acima de tudo, a luta de interesses políticos e económicos. Para o madeirense comum, ele materializa algo negativo, a imagem de um empresário sem escrúpulos que conseguiu vingar à custa do suor e sangue dos seus pais e avós.

W. Hinton deu largas à sua capacidade inventiva e inovou o processo tecnológico do engenho. Mas depois cedeu ao fascínio das máquinas inglesas que dominaram a revolução industrial. A par disso, ele puxou da sua capacidade de protagonismo político, aproveitando as conturbadas águas da República e os primórdios do Estado Novo, para conseguir uma posição dominante e quase de monopólio na indústria açucareira. Açúcar branco era apenas no Hinton, os outros só podiam fabricar melaço e aguardente. Tudo isto pela famigerada lei da aguardente de 1911 e das posteriores medidas que favoreceram o quase monopólio da laboração do engenho do Hinton até que se calou em 1985.

Também aqui a situação não é inédita. Em todas as áreas açucareiras a evolução da indústria açucareira fez-se à custa desta tendência para o monopólio daqueles que conseguiram inovar. O investimento era tamanho e só seria possível à custa de uma situação preferencial.

Por tudo isto o engenho do Hinton é um marco emblemático, até ao momento indelével, da nossa memória colectiva. Todavia perpetua-lo é contrariar o processo irreversível das exigências do presente! Hoje do complexo pouco mais resta que espaço e as paredes que escondiam todo esse complexo maquinismo. O miolo, depois da sua paragem, foi desaparecendo aos poucos.

A este liga-se outro da Ribeira do Faial, há mais de dez anos esperando por um projecto museológico adequado. O engenho do Faial é o meio-termo entre uma tradição industrial assente na força motriz da água e o aparecimento da nova força do vapor. Do conjunto pouco ou nada resta capaz de testemunhar aquilo que foi. Apenas o sítio, as paredes desnudas e devoradas pelas silvas e a recordação da ambiência perdida que a água da ribeira levou para sempre.

Esta tendência, inata em muitos de nós, para a defesa do património arqueológico demonstra também a nossa impotência e camuflado desprezo por um património que se desmorona diante dos olhos. Fala-se da sua importância, mas ninguém o justifica ou tenta demonstrar o porquê. Tão pouco nos preocupamos com aquilo que se tem feito noutros espaços açucareiros. O nosso empenho quase se resume em apontar os destruidores do nosso património.

No Brasil ou na Jamaica erguem-se novos engenhos sobre os escombros dos antigos, mas também sobrevivem alguns engenhos tradicionais, que pela técnica do museu vivo, algo que ignoramos, cativa a atenção do residente e visitante. Esta poderá ser expressa através da simulação da ambiência ou da recriação do movimento real do engenho. Reunir os materiais e mantê-los de modo estático em espaços bem decorados é coisa do passado. Melhor será deixar-se tudo com está.

Não é carpindo a nossa infeliz situação ou mostrando as eternas ruínas que a questão se resolve. Será que nos Falta convicção e ânimo para uma opção decisiva? Por esse mundo fora não faltam exemplos, o que parece faltar são os meios financeiros e a determinação para defender com denodo e realismo o nosso património e um conhecimento correcto da arqueologia do açúcar."

Alberto Vieira - Centro de Estudos de História do Atlântico - Governo Regional da Madeira, 1996

Miguel Oliveira (sócio n.º 144)

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